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Rumo a uma nova Yalta?


Com o retorno de Trump à presidência, goste ou não, fala-se da possibilidade de um acordo entre Estados Unidos e Rússia, especialmente em relação à Ucrânia. É realista imaginar que essas duas potências possam chegar a um acordo que inclua todas as áreas de conflito nas quais exercem influência global? Porque, convenhamos, se fosse esse o caso, nos encontraríamos testemunhando um novo processo semelhante ao de Yalta.


A primeira tentativa histórica


A Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, representou um momento crucial na redefinição da ordem mundial do pós-guerra, marcando a transição da aliança antifascista para o nascimento de um sistema bipolar dominado pelos Estados Unidos e pela União Soviética. O encontro entre Roosevelt, Churchill e Stalin foi motivado pela necessidade de administrar a vitória iminente sobre as potências do Eixo, evitar o colapso da Europa e estabelecer uma nova ordem internacional.

A agenda das negociações girava em torno de três questões fundamentais: a reorganização da Alemanha e da Europa Central, o papel da União Soviética no teatro do Pacífico e a estrutura da nova ordem global. Embora o tratado sancionasse a cooperação entre as potências vitoriosas, também lançou as bases para um confronto geopolítico que estava destinado a piorar nas décadas seguintes.


O tratado sancionou vários acordos, entre os quais vale a pena mencionar:

  1. A divisão da Alemanha e Berlim em quatro zonas de ocupação (americana, britânica, soviética e francesa). Esse arranjo lançou as bases para a subsequente divisão da Alemanha em dois blocos opostos.

  2. Reparações de guerra, particularmente em benefício da União Soviética, que obteve a possibilidade de retirar recursos das zonas alemãs sob seu controle.

  3. A entrada da URSS na guerra contra o Japão, com a promessa de obter o controle de territórios estratégicos como a Manchúria e as Ilhas Curilas.

  4. A estrutura política da Europa Oriental, com o reconhecimento da esfera de influência soviética na Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária e Tchecoslováquia. Apesar das promessas de eleições livres, a presença soviética resultou em uma sovietização progressiva dos regimes locais.

  5. A criação da ONU, com a adoção do princípio do direito de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurança.


Um dos aspectos mais importantes da conferência foi a decisão de dividir a Alemanha em quatro zonas de ocupação. O princípio da desmilitarização e desnazificação foi acompanhado por um sistema de reparações de guerra, com a União Soviética obtendo o direito de exigir recursos das zonas controladas. No entanto, a gestão da Alemanha logo se tornou um campo de batalha entre os Estados Unidos e a URSS, culminando na futura divisão entre a Alemanha Oriental e Ocidental.


O caso da Polônia evidenciou as diferenças ideológicas entre as potências: enquanto Churchill e Roosevelt insistiam na formação de um governo democrático, Stalin impôs um executivo pró-soviético, explorando a presença do Exército Vermelho. Essa política se estendeu a toda a Europa Oriental, onde os regimes comunistas se consolidaram sob supervisão soviética, apesar das promessas de eleições livres.


Em nível global, a conferência sancionou o nascimento da ONU, uma instituição destinada a substituir a fracassada Liga das Nações. Para garantir o equilíbrio entre as grandes potências, foi introduzido o direito de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurança, medida que mais tarde influenciaria o equilíbrio político durante a Guerra Fria.


Outro ponto-chave foi o envolvimento soviético na guerra contra o Japão, com a URSS obtendo a Manchúria, Port Arthur e as Ilhas Curilas em troca. Este acordo consolidou a presença soviética na Ásia e contribuiu para as tensões na região, culminando na Guerra da Coréia.


Yalta é frequentemente interpretada como um compromisso pragmático, mas também como o início da Guerra Fria, pois sancionou a divisão do mundo em duas esferas de influência opostas. A expansão soviética na Europa Oriental e a resposta dos EUA por meio da política de contenção geraram uma dinâmica de conflito ideológico e militar.


Se para o Ocidente Yalta era o símbolo de uma "rendição" aos soviéticos, para a URSS representava uma vitória diplomática que garantia a segurança de suas fronteiras. De qualquer forma, a conferência marcou o fim do equilíbrio multipolar do século XIX e o início de uma nova era de relações internacionais, dominada pela lógica bipolar e pela dissuasão nuclear.


Um mundo multipolar, já não bipolar, e o futuro da Europa


Em primeiro lugar, deve-se enfatizar que o contexto atual é muito diferente do bipolar do período pós-Segunda Guerra Mundial. O surgimento de novas potências como China e Índia tornou o mundo multipolar, tornando impossível para os Estados Unidos e a Rússia decidirem o destino global por conta própria, como foi o caso no passado. Apesar disso, ainda existem regiões onde ambos os países mantêm influência significativa.


Entre estas regiões, a Europa ocupa uma posição de importância primordial.

Muitas vezes tem sido corretamente apontado por muitos autores e analistas que a guerra na Ucrânia não é apenas uma questão de expansão da OTAN ou controle territorial pela Rússia, mas representa uma batalha mais ampla entre os Estados Unidos e a Rússia pelo futuro da Europa. Os efeitos desta guerra são evidentes: as crises políticas e econômicas estão afetando o Reino Unido e os outros países europeus alinhados com Washington contra Moscou em particular, demonstrando que o verdadeiro cerne da questão não é a própria Ucrânia, mas a estrutura da Europa. A política de sanções foi acompanhada pela "política de incidentes aleatórios", como no caso do Nord Stream 2, para citar um exemplo muito conhecido.


Os estados europeus que seguiram a linha dos EUA na Ucrânia estão agora em apuros, com o crescimento de movimentos a favor da normalização das relações com a Rússia, com cidadãos cansados da pressão fiscal, traições políticas e um ódio instilado contra seus vizinhos russos. Para esclarecer, é importante enfatizar que esses movimentos não devem ser automaticamente considerados "anti-imperialistas" ou "progressistas", pois continuam sendo uma expressão dos interesses de suas elites econômicas e de um estreito nacionalismo de estilo ocidental. Um exemplo disso é sua rápida adesão à linha pró-israelense, demonstrando que sua posição em relação aos Estados Unidos é mais pragmática do que ideológica.


É claro que o futuro da Europa será, sem dúvida, uma questão-chave nas negociações entre Trump e Putin. Além disso, não se pode descartar que figuras políticas semelhantes a De Gaulle possam surgir na Europa, capazes de promover uma linha mais independente dos Estados Unidos.


A política de Trump de reduzir o envolvimento americano no exterior pode levá-lo a aceitar um acordo no estilo "Yalta 2.0" que deixaria os aliados europeus administrarem a si mesmos. Nesse cenário, a Rússia poderia aproveitar sua posição geográfica para restabelecer laços com países europeus com vistas à cooperação eurasiática.


Uma nova ordem política poderia emergir na França e na Alemanha, com governos de "nova direita" e reformas da UE que reduziriam sua influência sobre as nações individuais. O destino do Reino Unido, por outro lado, é uma questão separada, porque é o grande inimigo da Europa e merece uma discussão dedicada em artigos futuros.


Perspectivas para o Oriente Médio


Outra região onde os Estados Unidos e a Rússia exercem sua influência é o Oriente Médio e o Norte da África.

O golpe na Síria que levou à queda de Bashar al-Assad, bem como o cessar-fogo entre Palestina e Israel, podem ser considerados os primeiros sinais da nova abordagem de Trump na região. Estamos todos cientes do sionismo de Trump, mas vamos agora considerar os aspectos pragmaticamente políticos, deixando os ideológicos de lado por um momento.


As declarações de Trump sobre Gaza confirmam que os Estados Unidos pretendem fortalecer seu apoio histórico a Israel e é provável que Washington continue a apoiar grupos étnicos armados como o PKK, considerado uma ameaça à integridade territorial da Turquia, Síria, Irã e Iraque. A eleição de Trump levou a um revés para a Rússia na Síria, com uma redução de sua presença militar no país. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos parecem querer fortalecer seu controle sobre os estados do Golfo, limitando sua reaproximação com a Rússia e a China.


Enquanto isso, Moscou e Teerã assinaram um acordo de cooperação estratégica para relançar corredores comerciais e energéticos, com implicações também no campo militar, apertando à força a Orla da Eurásia.


Uma questão-chave nas negociações entre Trump e Putin será o futuro de Israel, considerado o posto avançado americano na região e com uma presença significativa de imigrantes russos. Isto tem muito a ver com a Europa, porque o projecto mais importante agora é a Rota do Algodão, onde tanto Israel como Itália desempenham um papel central.


Entre as possíveis "soluções" discutidas em um hipotético Yalta 2.0 poderiam estar:


  • Garantias mútuas de segurança entre o Irã e Israel;

  • O fim da ocupação israelense de Gaza;

  • Uma redução do poder militar do Hamas em troca do fim da ocupação;

  • A manutenção do controle israelense sobre as Colinas de Golã por razões de segurança;

  • Fim dos ataques a Israel por milícias regionais, particularmente no Iêmen.


A agressividade estrutural de Israel torna improvável que essas suposições se traduzam em paz duradoura.


Trump e Putin também podem discutir questões relacionadas aos países do Golfo, preços do petróleo e o papel da OPEP, bem como a situação na Líbia, no Iêmen e a presença de grupos armados no norte da Síria. O que certamente sairá disso é pelo menos um rascunho de um acordo mundial de formatação.

Os critérios de dissuasão, soft power e hard power podem mudar em questão de horas.


Um mundo não mais dominado pelos EUA e pela Rússia


Acho que agora está bem claro que a mudança na ordem mundial levará a um novo tabuleiro de xadrez mundial: não vivemos mais em um sistema bipolar como o que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, a ascensão de novas potências como China, Índia e Irã tornou um contexto multipolar, com atores regionais tomando decisões autônomas, com o Sul Global emergindo fortemente e com uma percepção geral e generalizada das relações internacionais.


Por essa razão, os Estados Unidos e a Rússia não têm mais o poder de redesenhar o mundo por conta própria, como fizeram em Yalta em 1945.


O que está claro é que eles continuarão buscando compromissos em áreas de maior tensão, levando em consideração a nova dinâmica geopolítica.


Na mídia, parece que apenas os EUA e a Rússia estão falando, mas nos bastidores e longe das câmeras há muito mais jogadores envolvidos. Que comecem os jogos.






 
 
 

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