top of page

A Casa, o Jornal e a Corte

“No Brasil, a res publica é cosa nostra”. O aviso, lançado décadas atrás por Roberto Campos, parecia apenas um sarcasmo afiado — mas hoje soa como descrição literal do modo como operam nossas instituições. A coisa pública virou propriedade simbólica de corporações estatais e seus aliados editoriais. E como em toda organização que se arroga dona do Estado, a dissidência é vista como ameaça, o perdão como fraqueza e o contraditório como sabotagem.


A recente cadeia de eventos envolvendo o Supremo Tribunal Federal, a colunista Eliane Cantanhêde e a proposta de anistia aos réus do 8 de janeiro oferece um estudo de caso perfeito desse mecanismo. Primeiro, segundo revelou a própria jornalista em entrevista à GloboNews, um ministro do STF sugeriu a ela uma pergunta para constranger os parlamentares favoráveis à anistia: “Se invadissem a sua casa, jogassem rojões, paus e barras de ferro, destruíssem seus móveis e quisessem que o vizinho tomasse o poder, você pediria anistia?”. Eliane achou a frase “muito interessante” — e dias depois a transformou em coluna.


O segundo ato veio com a publicação do texto no jornal, em tom incisivo, reforçando a metáfora doméstica como arma retórica. A anistia passou a ser vista não como um instrumento jurídico legítimo, mas como um ato de complacência com criminosos violentos. O argumento emocional, antes sussurrado por um magistrado em off, agora circulava nos jornais como se fosse simples bom senso. A ideia havia sido testada com sucesso.


Veio então o terceiro movimento: o próprio ministro, durante o julgamento no STF, repete publicamente a metáfora — desta vez não mais como sugestão ou bastidor, mas como discurso institucional. A pergunta antes plantada e depois veiculada, retorna à boca do juiz como dogma. Como quem diz: se até a imprensa aceitou, por que não tornar oficial?


Mas aqui surge a verdadeira pergunta — e ela talvez seja a mais reveladora: quem pautou quem? Teria o Ministro, de fato, soprado a pergunta à jornalista, como ela afirma? Ou teria ela se antecipado em busca de protagonismo e ele, mais tarde, endossado publicamente o que já circulava no noticiário? Não há como saber. Só nos resta especular diante dos fatos. Em qualquer dos casos, a simbiose é incômoda. Porque quando jornalista e juiz falam a mesma língua, no mesmo tom, com o mesmo timing, o que se rompe é a autonomia entre crítica e poder. Já não há imprensa vigilante nem juiz distante — há uma sinfonia de conveniências onde cada um toca sua parte na mesma partitura.


A metáfora da casa invadida é eficaz, mas intelectualmente desonesta. Reduz um debate jurídico complexo a um impulso emocional. Invocar rojões e barras de ferro pode comover, mas não justifica a abolição do princípio da culpabilidade pessoal. Nenhuma residência familiar equivale ao Estado democrático de direito. Nenhuma invasão doméstica representa a totalidade de um evento político multifacetado. E, sobretudo, nenhum ministro do Supremo deveria reduzir o Parlamento a um auditório de culpados em potencial, como se discordar da Corte fosse ato de traição.


E o mais grave: ao supostamente tratar o Supremo como uma casa, o Ministro revela sua concepção patrimonial do poder. O STF não é residência privada nem fortaleza pessoal. Suas dependências são públicas, sua legitimidade vem do texto constitucional, e sua missão é servir, não mandar. Ao sugerir uma paridade do tribunal como “sua casa”, o magistrado deixa escapar a verdade incômoda: ele não se vê como intérprete da Constituição, mas como proprietário simbólico da instituição. E aí se cumpre o diagnóstico de Roberto Campos: a res publica foi sequestrada — e quem a guarda agora age como dono.


A Constituição, porém, continua ali. No art. 48, VIII, ela atribui ao Congresso a competência para conceder anistia. Quando um ministro se antecipa à deliberação legislativa, ironiza seus defensores e utiliza uma jornalista para lançar sua tese antes do voto, não está exercendo magistratura — está fazendo política. E quando a jornalista assume como sua uma frase de bastidor, e o juiz a repete como se fosse reflexão própria, temos o pior dos mundos: o Poder Judiciário deixando de julgar para discursar, e a imprensa deixando de informar para coreografar.


Porque quando os guardiões do texto passam a agir como seus donos, e quando a liberdade de imprensa vira instrumento de blindagem institucional, a res publica já não existe. Resta apenas a cosa nostra.


Fonte: *Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum


 
 
 

コメント


2.png

ESCOLA DE ALFABETIZAÇÃO POLÍTICA

por Rosimeire Abrahão

bottom of page